segunda-feira, março 08, 2004

Melhor Saúde?

O ensino médico em Portugal

Nos últimos tempos tem-se debatido com alguma frequência a questão do ensino médico em Portugal, sendo que na última semana surgiu uma nova proposta no sentido de se criarem novas faculdades de Medicina na Madeira e Açores, mas que apenas contemplem os primeiros anos de curso, isto é, o chamado ciclo básico, que antecede o ciclo clínico com início no 4º ano.

Se bem que seja uma ideia estruturada e com bom fundamento, parece-me que apresenta algumas falhas:

1. O problema do ensino da Medicina em Portugal coloca-se a partir do 4º ano de ensino, isto é, o ciclo clínico. A partir desta fase os assistentes da faculdade (Médicos que durante o seu horário de trabalho são responsáveis pela orientação e formação de um grupo de alunos), deixam de ser remunerados, baixando desde logo o número de assistentes disponíveis.

2. O número de alunos por assistente chega a ser de 20, o que na prática significa cerca de 20 pessoas a assistirem à consulta de um doente numa sala por vezes de 4 por 4 metros.

3. Na verdade estes 20 alunos apenas correspondem aos do 4º ano, ainda falta os alunos do 5º ano, também acompanhados pelos mesmos assistentes. Os do 6º ano, se bem que um pouco mais autónomos também dependem da orientação do tutor, bem como os recém licenciados (Internos do primeiro e segundo ano) que também carecem desta mesma orientação dos mesmos assistentes…

4. A relação aluno/assistente/doente é praticamente inexistente, o aluno carece de atenção e de prática hospitalar.

A criação de novos anos de ciclo básico apenas vai aumentar todas estas dificuldades, isto é, vamos criar um problema maior! O número de alunos nas enfermarias dos hospitais universitários vai aumentar, sem o mínimo de condições, sendo esta a razão de fundo que me leva a discordar da criação destas novas estruturas.

Para além desta situação, como podemos facilmente compreender da leitura do texto, os anos que implicam maiores gastos relativamente a docentes são os correspondentes ao ciclo básico, o que indirectamente levará a um aumento de gastos pelo Ministério da Educação, no entanto, são estes anos que necessitam de menos estruturas de apoio relativamente aos alunos, uma vez que são fundamentalmente aulas de carácter teórico, com excepção das disciplinas de Bioquímica, Histologia, Anatomia Patológica e Microbiologia.

A criação destes novos “ciclos básicos de Medicina”, não vai resolver o problema de falta de médicos, uma vez que a entrada nas enfermarias vai continuar a dar-se apenas nos hospitais ditos universitários e parece-me impossível que o número de alunos nas enfermarias possa aumentar.

O problema da falta de médicos em áreas específicas de Portugal vai continuar. Esta não é uma verdadeira deslocalização de médicos, mas apenas um aumento da centralização num futuro próximo, pois os anos finais do curso continuam nos hospitais centrais.

No entanto, penso que algumas medidas devem ser tomadas:

1. A criação de novas estruturas de apoio ao ensino médico deve ter por base instituições com capacidade de orientar a formação clínica, isto é, criar novos ciclos clínicos.
O ensino da medicina a partir do 4º ano deve ser estendido a todos os hospitais distritais do país, surgindo desde logo inúmeras vantagens, assim:

1.1. Resolução da desertificação médica no interior

Os alunos deslocalizados por força do curso apenas existir em 3 cidades, têm a possibilidade de a partir do 4º ano regressarem ao seu distrito de origem se assim o desejarem. O mais certo é este retorno. Um aluno de 22 anos, após uma experiência fora de casa provavelmente vai voltar, o que não acontece no fim do curso após ambientação a uma nova realidade e cidade, bem como a fortes laços de amizade que dificilmente serão quebrados. É preciso lembrar que a formação médica continua para além do sexto ano.

1.2. Maior profissionalismo e actualização em todo o país

O facto de haver um aluno para ensinar, promove o tutor a levar mais longe a sua investigação nas diferentes áreas de intervenção, sendo o primeiro beneficiado o doente, pois terá um nível de prática médica semelhante em todo o país, uma maior actualização e profissionalismo de todos os médicos.

1.3. Maior qualidade do ensino médico

A relação aluno/tutor/doente, sai beneficiada. O aluno deixa de ser visto como um motivo de embaraço e desconforto ou mesmo indesejável e passa a ser um contributo positivo na enfermaria e serviço, contribuindo para uma melhor formação e actualização de todos bem como um instrumento de apoio ao doente. A disponibilidade será de todos para todos.

1.4. Confiança no sistema de saúde

O facto do ensino médico ser estendido a todo o país levará a um aumento de confiança dos utentes em todos os centros hospitalares, evitando-se o que hoje acontece, em que todos procuram ajuda no hospital fora da sua área de residência. Deixa de haver a procura do hospital central onde vai poder encontrar o Professor.


1.5. Menos gastos

A criação de novos ciclos básicos levará à formação de estruturas de raiz, isto é, novas instalações, novos docentes, novos administrativos, … A criação de novos ciclos clínicos terá por base o Juramento de Hipócrates em que cada médico se compromete a ensinar o próximo sem que por isso deva ser remunerado.
O facto de haver novos alunos nos hospitais distritais num futuro próximo levará a que aquilo que hoje acontece, em que, por vezes material novo não é usado por falta de pessoal especializado, deixe de acontecer pois a formação de novo médicos nessas áreas e em contacto com o novo material poderá resolver esse problema. Deixa de haver um problema de falta de especialização na periferia.

1.6. Mais médicos

A falta de formação de novos profissionais de saúde não tem por base uma dificuldade de integração de novos alunos nos primeiros anos, mas sim em anos do ciclo clínico. A criação de novos ciclos clínicos levará a um aumento do número de vagas nas Faculdades de Medicina.

1.7. Melhor Saúde. Melhor País

É fácil compreender que uma melhor saúde para todos fará de nós um melhor país. Uma maior confiança no serviço Nacional de Saúde só por si irá melhor a condição de vida de muitos doentes que por vezes apenas o são por desconfiança nas estruturas que o acompanham.